Nada como o futuro!

Sacuméné?

Não gosto de poesia.

Algumas pessoas estranham isso, principalmente quando ficam sabendo o quanto eu gosto de ler. O que fazer? É orgânica, instintiva minha alergia àquele monte de frases soltas na página, independentemente de haver rima ou não. Tem mais: livros de poesia vão de encontro à preocupação que atinge grande parte das pessoas civilizadas e conscientes: a preservação do meio ambiente. Pouca escrita, linhas incompletas, páginas subutilizadas, enfim, um latifúndio tipográfico.

O problema na verdade se chama verso. Entendam como ele age: leio o primeiro me preparando para o segundo, para ver se vejo alguma relação entre os dois; leio o segundo me esquecendo do primeiro. Volto ao início, passo pelo segundo novamente e, quando chego no terceiro, vão embora os dois versos anteriores, junto com a minha paciência e a compreensão daquela porcaria toda.

Mas eu tento vencer tal bloqueio; é necessário o contato com a matéria pois, já diz o Chris, sacuméné? E , pensem, o que é um homem que não domina seus instintos? Se a Natureza não me deu asas para voar, também ponho limites às suas ações – com parcimônia, claro, não quero confronto: retenho um tanto aqui, libero o acumulado ali… Sacuméné?

Como resultado dos meus esforços consegui, além de terminar de ler, gostar realmente de alguns poemas, que inclusive resistiram ao teste infalível desenvolvido por mim cuja finalidade está no próprio título: “ficaria melhor em prosa?” No primeiro dia do ano de 2011, compartilho com vocês um exemplo desses que me veio à mente hoje de manhã, Os Quatro Elementos de Vinícius de Moraes.

I – O FOGO

O sol, desrespeitoso do equinócio
Cobre o corpo da Amiga de desvelos
Amorena-lhe a tez, doura-lhe os pêlos
Enquanto ela, feliz, desfaz-se em ócio.

E ainda, ademais, deixa que a brisa roce
O seu rosto infantil e os seus cabelos
De modo que eu, por fim, vendo o negócio
Não me posso impedir de pôr-me em zelos.

E pego, encaro o Sol com ar de briga
Ao mesmo tempo que, num desafogo
Proibo-a formalmente que prossiga

Com aquele dúbio e perigoso jogo…
E para protegê-la, cubro a Amiga
Com a sombra espessa do meu corpo em fogo.

II – A TERRA

Um dia, estando nós em verdes prados
Eu e a Amada, a vagar, gozando a brisa
Ei-la que me detém nos meus agrados
E abaixa-se, e olha a terra, e a analisa

Com face cauta e olhos dissimulados
E, mais, me esquece; e, mais, se interioriza
Como se os beijos meus fossem mal dados
E a minha mão não fosse mais precisa.

Irritado, me afasto; mas a Amada
À minha zanga, meiga, me entretém
Com essa astúcia que o sexo lhe deu.

Mas eu que não sou bobo, digo nada…
Ah, é assim… (só penso) Muito bem:
Antes que a terra a coma, como eu.

III – O AR

Com mão contente a Amada abre a janela
Sequiosa de vento no seu rosto
E o vento, folgazão, entra disposto
A comprazer-se com a vontade dela.

Mas ao tocá-la e constatar que bela
E que macia, e o corpo que bem-posto
O vento, de repente, toma gosto
E por ali põe-se a brincar com ela.

Eu a princípio, não percebo nada…
Mas ao notar depois que a Amada tem
Um ar confuso e uma expressão corada

A cada vez que o velho vento vem
Eu o expulso dali, e levo a Amada:
– Também brinco de vento muito bem!

IV – A ÁGUA

A água banha a Amada com tão claros
Ruídos, morna de banhar a Amada
Que eu, todo ouvidos, ponho-me a sonhar
Os sons como se foram luz vibrada.

Mas são tais os cochichos e descaros
Que, por seu doce peso deslocada
Diz-lhe a água, que eu friamente encaro
Os fatos, e disponho-me à emboscada.

E aguardo a Amada. Quando sai, obrigo-a
A contar-me o que houve entre ela e a água:
– Ela que me confesse! Ela que diga!

E assim arrasto-a à câmara contígua
Confusa de pensar, na sua mágoa
Que não sei como a água é minha amiga.

 

Bom jeito de começar o ano!

Deixe um comentário